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Moral, Ética e Direito em Kant

O presente artigo tem por escopo, a partir, principalmente, da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant, discorrer sobre o modelo de relação kantiana da moral, ética e direito. A partir dos elementos da ética kantiana, notadamente, o seu caráter a priori, formal e universal, traçaremos uma reflexão sobre sua relação com o Direito. E por fim, compreender a legitimidade do exercício coercitivo do direito, como um elemento de justiça e delimitação dos arbítrios, pressuposto de uma convivência social e racional.
 
Aparentemente trata-se de uma tarefa fácil. Intuitivamente é possível perceber que há uma relação entre tais institutos. Contudo, o modelo e a lógica interna de qualquer grande filósofo devem ser precedidos de um olhar categorizado. Cada obra, cada autor deve ser entendido em seu mundo e em seu tempo. Os sistemas – aqui empregado no sentido de modelo ou padrão – de cada pensador têm que ser apreendido a partir dos seus conceitos próprios e mantendo-se a relação entre tais definições. Pinça-se, por ilustração, o termo “autonomia”. Autonomia isoladamente pode ter inúmeros sentidos que poderiam ir de autodeterminação até a concepção de individualismo. Tal exercício é uma investida de riscos subjetivistas e relativistas – que lembra os sofistas, tal como Protágoras.
 
“O desabrochar por si mesmo expressa a espontaneidade do abri-se. Tal característica primeira do Ser vem sublinhada para mostrar que o Ser acontece independentemente da subjetividade humana” (PAIVA, 1998, p. 48). Então, ao ler a palavra “autonomia” num texto kantiano não nos é permitido impingir a tal palavra o sentido que se acha conveniente ou não. Autonomia em Kant tem um sentido próprio e rigoroso. Conhecer tal sentido exclusivo permitirá compreender todo o sistema do pensamento kantiano e o seu rigorismo (e, portanto, a sua beleza); quanto nos permitir um eterno redescobrir da filosofia daquele. Compreender o autor e seus modelos filosóficos numa leitura autêntica de seus sentidos e conexões garantirão ao estudioso a compreensão do pensador por ele mesmo, o que evitará um discurso inautêntico, falacioso e vulgar. A auto-sinceridade dessa leitura e o apego ao sentido que cada autor emprega no seu filosofar permitirá o leitor um desfolhar permanente. E a franqueza na leitura deve estar conjugada com uma abertura radical categórica da intelecção do leitor.
 
“A liberdade que é traduzida como essência da verdade, no abrir-se do Dasein ao ente, deixando-se no seu ser, sem alterá-lo com categoria de uma subjetividade finita, será o horizonte de significatividade da verdade e do Ser” (PAIVA, 1998, p. 33).
Kant só é Kant caso a leitura se proceder permitindo que o texto o desvele. É obtuso o expediente mental de tentar forçar o pensamento de um filósofo a um dado problema pré-concebido. Por exemplo, tentando garantir uma autoridade de argumentos certos autores tentam pinçar frases soltas em Kant para justificar a desobediência civil. Tal tentativa é falaciosa e retórica. Mas, há quem se arrisque. Em Kant não há espaço para tais teses. Contudo, lendo Kant fora de seu contexto…
 
A leitura de um grande autor somente deve ser feita se houver esse “permitir”, essa abertura radical por parte do estudioso na busca do sentido originário do autor e sua filosofia. Tal salva-guarda é que permitirá uma posição de liberdade frente ao texto na busca de seu horizonte de uma verdade possível. Destarte, é imperioso conhecer o mundo de cada filósofo.
O “mundo” da filosofia kantiana está na tensão entre as concepções realistas em face das idealistas.
 
Como se vê, a revolução copernicana de Kant é a substituição, em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista à hipótese realista. O realismo admite que uma realidade nos é dada, quer seja de ordem sensível (para os empiristas), ou de ordem inteligível (para os racionalistas), e que o nosso conhecimento deve modelar-se dobre essa realidade. Conhecer, nessa hipótese, consiste simplesmente em registrar o real, e o espírito, nesta operação, é meramente passivo.
 
O idealismo supõe, ao contrário, que o espírito intervém ativamente na elaboração do conhecimento e que o real, para nós, é resultado de uma construção. O objeto, tal como o conhece, é, em parte, obra nossa e, por conseguinte, podemos conhecer a priori, em relação a todo objeto, os característicos que ele recebe de nossa própria faculdade cognitiva (PASCAL, 2007, p. 36).
A partir desse momento de tensão, podemos entender que o homem kantiano – que possui uma natureza dúplice corpórea e racional – habitará os dois mundos, a saber, o sensível e o inteligível.
 
Assim compreendido, passa-se a um caminhar pelo modelo kantiano em busca das relações entre ética, moral e direito, para entender que não há uma separação, mas uma distinção. E o homem antes de se constituir como um ser de direito, antes, ele é um ser moral, pois busca um fim moral. Destarte, o direito está no âmbito de uma filosofia moral. Assim sendo, mister compreender mais sobre a moral kantiana.
 
Kant entende que os preceitos da moralidade são para todos. Estes seriam comandos puros – sem inclinações – mas, fundamos numa liberdade e na razão prática. A liberdade não seria um direito ou uma garantia como atualmente se apresenta na doutrina do direito. Antes, a liberdade em Kant nos torna responsáveis por nossas decisões. E a verdadeira liberdade é agir conforme a lei moral, que se apresenta como a própria liberdade do ser racional.
O conceito de liberdade é um conceito racional puro e que por isso mesmo é transcendente para a filosofia teórica, ou seja, é um conceito tal que nenhum exemplo que corresponda a ele pode ser dado em qualquer experiência possível e de cujo objeto não pode obter qualquer conhecimento teórico: o conceito de liberdade não pode ter validade como princípio constitutivo da razão especulativa, mas unicamente como princípio regulador desta e, em verdade, meramente negativo. Mas no uso prático da razão o conceito de liberdade prova sua realidade através de princípios práticos, que são leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha, independentemente de quaisquer condições empíricas (da sensibilidade em geral) e revelam uma vontade pura em nós, a qual conceitos e leis morais têm sua fonte. (KANT, 1798, p. 64)
 
Nesse mesmo passo, Kant afirma que leis morais são leis práticas incondicionais.
Nesse conceito de liberdade, que é positivo (de um ponto de vista prático), estão baseadas leis práticas incondicionais, denominadas morais. Para nós, (…) as leis morais são imperativos (comandos ou proibições) e realmente imperativos (incondicionais) categóricos; (…). (KANT, 1798, p. 64)
 
Sendo a liberdade o que nos torna responsáveis por nossas decisões. Há que entender que essas decisões deverão passar pela crítica da boa vontade.
Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança à vontade no que respeita aos seus objectos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. (KANT, 1785, p. 25)
 
Percebe-se que a boa vontade é um conceito moral – altamente estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulterior. Para desenvolver o conceito de boa vontade é necessário “encarar o conceito do dever que contém em si o de boa vontade, (…).” (KANT, 1985, p.26). A vontade boa é a disposição de ação por dever, contudo, sem nenhum interesse. Assim sendo, o agir racional é observar o dever por ser ele o dever. “E exactamente aí é que começa o valor do caráter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever” (KANT, 1785, p. 29).
“Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina” (KANT, 1785, p. 30). Independeria, portanto, do objeto do agir, mas tão apenas do princípio do querer que gerou a ação independente de outros objetos da faculdade do desejar. Na moral de Kant, a razão determinaria infalivelmente à vontade. Portanto, a vontade acolherá exclusivamente o que a razão – independentemente de qualquer inclinação – entende como praticamente necessário e bom. Nesse modelo, as ações objetivamente necessárias coincidiriam com as subjetivamente necessárias.
“A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo” (KANT, 1785, p. 48).
 
“Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen), e mostram assim a relação de uma lei objectiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação)” (KANT, 1785, p. 48).
Em suma, “os imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação entre leis objectivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional (…)“ (KANT, 1785, p. 49).
 
Há dois tipos de imperativos os hipotético e os categóricos. Somente os imperativos categóricos terão o caráter de uma lei prática. “O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade” (KANT, 1785, p. 50). O imperativo categórico é a própria lei da moralidade, a máxima da ação. O que lhe garantiria um caráter universal, ou seja, uma lei geral. “Age apenas segundo uma máxima tal que posas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1785, p.59).
 
É a racionalidade que concebe tal imperativo e ainda o reconhece como um fim em si mesmo, além, de seu caráter formal e o seu valor absoluto.
Nesse ponto da exposição, pode-se concluir que somente a vontade de todo ser racional pode ser tida com a vontade legisladora universal. “A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis” (KANT, 1785, p. 67). A vontade em Kant possuiria uma relação distinta a algumas concepções contemporâneas, de estar submetida a priori à norma. A vontade é tida como legisladora dela mesma. E assim sendo, somente agora é possível partir para a submissão da vontade à lei.
 
Se assim entendido, não é forçoso observar que a validade da vontade – aqui entendida como lei universal do possível – teria um paralelismo com a ligação universal da existência das coisas segundo leis universais. “(…) toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas máximas (…)” (KANT, 1785, p. 74).
Surge, neste instante, o que, para Kant, é o princípio supremo da moralidade: a autonomia da vontade, ou seja, a propriedade pela qual ela é para si mesma sua própria lei. O princípio de autonomia indica não escolher senão de modo a que as máximas da escolhas estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo, como lei universal. (PAGOTTO-EUZEBIO, 2007, p. 64)
 
Nesse sentido, somente seria livre o indivíduo que age conforme a lei moral. Relembrando a dualidade do início do texto, o homem kantiano no mundo fenomênico está sujeito a leis naturais (heteronomia). Já no mundo inteligível (numênico) move-se por leis racionais, num campo de verdadeira autonomia da vontade. Observa-se que a autonomia está, portanto, associada ao conceito de liberdade. E aquela está associada ao princípio universal da moralidade, que é o fundamento de todo ser racional. Com efeito, o dever de agir por respeito à lei moral é oriundo da racionalidade humana.
 
Ora à idéia da liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, o qual na idéia está na base de todas as acções de seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos. (KANT, 1785, p. 102).
Após essa ligeira sinopse, pode-se concluir que em toda a filosofia kantiana a moral, a racionalidade e a liberdade são “vetores” que determinam a racio kantiana. E são exatamente tais elementos que são utilizados para compreender a distinção entre Moral e Direito.
Os autores positivistas, notadamente Hans Kelsen, entendem que a “pureza” do direito depende da separação do mundo da moral. Tal teoria parte da premissa que Direito e Moral são sistemas diferentes. Para H. Kelsen em paralelo com as normas jurídicas haveria normas sociais, que são morais. Contudo, o direito poderá ser moral, contudo jamais obrigatoriamente. O positivismo entende que não haveria uma moral total. Somente seriam concebíveis várias moralidades individuais condicionadas no tempo e no espaço. Por fim, entende os positivistas que somente o Direito teria coercibilidade ao passo que a moral seria mera reguladora íntima.
 
O positivismo filosófico foi fruto de uma crença exacerbada no poder do conhecimento científico. Sua importância para o Direito resultou no positivismo jurídico, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. Não é no âmbito do Direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e justiça. (BARROSO e BARCELLOS, 2004, p.475).
 
Observa-se que tal leitura dos positivistas parte de uma concepção subjetivista e relativista da moral. E, ainda, somente a heteronomia possuiria o caráter coercitivo e científico. Ou seja, a moral e a autonomia não seriam capazes de gerar um dever. Ora, a filosofia kantiana é oposta a toda essa idéia positivista. A moral é universal e transcendente, ademais, há obrigações – inclusive contratuais – cumpridas por dever oriundo da moral.
 
Em Kant não há separação categórica entre Direito e Moral; haveria simples distinção. Tal concepção aponta para uma filosofia deontológica, ou seja, uma teoria do dever no que respeita à moral. Haveria deveres morais na esfera íntima em relação distintiva ao direito, que seria afeto ao foro externo – esse é o formalismo jurídico-moral.
Pode-se afirmar que Kant integra a moral a legislação exterior na doutrina do direito. Tal assertiva fica evidente com a leitura do termo “moral” para se referir não ao mundo das intenções, mas ao âmbito das leis genericamente concebidas. Como já afirmado – o homem é um ser moral – tanto a legislação ética ou jurídica são – ou deveriam ser – em última instância manifestações morais. Assim sendo, uma das distinções possíveis entre direito e ética está baseada em qual legislação está domando o arbítrio ou o desejo.
 
Retornando aos pilares filosóficos: moral, a racionalidade e a liberdade têm algumas conclusões. A lei moral pressupõe e reconhece a liberdade. A liberdade não é a ausência de lei – essa seria a libertinagem -, pois haveria a lei da liberdade. É a moralidade que mostra antes de tudo o conceito de liberdade. Sendo a liberdade uma dedução fulcro na lei moral, tal exercício é uma elaboração racional a priori. Nesse exercício racional puro, a liberdade é concebida a priori, logo, apta a ser causalidade racional. A ausência de liberdade significa ausência de lei moral, já que a liberdade é a fonte da lei. Seremos livres enquanto formos capazes de obedecer à lei moral.
 
Noutro giro, o direito procura compatibilizar a liberdade ao máximo, possibilitando a coexistência dos diferentes arbítrios. Contudo, essa limitação da liberdade individual se dá de forma universal, para possibilitar o exercício da liberdade na esfera individual. Daí que a liberdade – e não a libertinagem – é oriunda desse direito, ou seja, da limitação dos arbítrios em sociedade. “O homem ao participar da sociedade civil tem o direito para proteger e resguardar a liberdade de todos os cidadãos. Dessa forma, o direito se realizará através da coação, tornando possível a liberdade” (PEREIRA, 2003, p. 148).
Em aplauso aos princípios universais da razão, o direito deverá submeter à razão – não a razão subjetiva, mas fazendo da máxima uma lei universal – para dispor sobre o ordenamento jurídico e as respectivas coações, com escopo de evitar as arbitrariedades individuais.
 
O direito deverá emanar da razão pura para o homem cumprir o dever, ou seja, suas ações conforme o dever. O que afastaria qualquer exercício arbitrário do direito evitando, portanto, o seu uso como um instrumento de violência, de injustiça, de controle e de dominação. A lei seria, portanto, para preservar a dignidade do homem – inserido em sociedade na qual a liberdade seja o princípio regulador.
 
Mas, a relação entre moral e direito possui outros desafios em Kant. Uma das diferenças entre as “legislações” - a moral e o direito – está entre móbil e lei, como princípio motriz de ajuizamento. A lei – no sentido de juízo – e sempre moral como exigência da universalidade. Contudo, é no momento da execução que as legislações se diferenciam. Enquanto na moral o dever é o princípio motriz do ato; já no direito tal “motor” não é relevante – em face do elemento externo coator. “A mobilização moral ou não-moral diferencia propriamente o que é ético do que é jurídico, e não o conteúdo das obrigações” (LIMA, 2005, p. 142). A Ética apropria os deveres externos como seus, ou seja, os transforma em legislação interna, logo, remete a um processo de mobilização pelo qual a lei moral se faz móbil. Nesse sentido, a legislação ética não é do mundo externo, apesar dos deveres terem ambivalência, isto é, tanto internos quanto externos.
 
Mais uma vez é mister em Kant retornar ao “imperativo moral”. A legislação jurídica regula o exercício do arbítrio (liberdade) de outrem, assim sendo, ela é lei prático-moral. Contudo, “a abstração da exigência de ser cumprida por causa desta obrigatoriedade constitui o propriamente jurídico” (LIMA, 2005, p. 142). O Direito não requer, portanto, que o agir esteja vinculado à ética, mesmo sendo a lei jurídica também ética. Com efeito, a exterioridade do direito não constitui uma cisão da idéia da legislação prática da razão pura; pelo contrário é o plus da legislação interna da razão. Perceba que a lei moral não é um mero ideal, ou efeito retórico de uma utopia; mas, é a regra prática pura.
 
Quando a legislação dispõe sobre os fenômenos externos, as leis morais se perfazem jurídicas. Entretanto, sendo elas também fundamentos das ações, elas são éticas. Constata-se que há uma diferença entre moral e ética em Kant. Moral é o gênero que compreende duas espécies: o ético e o jurídico.
 
A especificação do moral em termos do jurídico e do ético é feita por Kant com base em uma análise dos elementos envolvidos em uma legislação prática ou moral. “Toda legislação [prática] contém duas partes: primeiro, uma lei, que representa objetivamente como necessária a ação que deve acontecer, i.e., que faz da ação um dever, segundo, um móbil, que liga subjetivamente à representação da lei o fundamento de determinação do arbítrio para esta ação; a segunda parte é, pois esta: que a lei faz do dever um móbil. Pela primeira, a ação é representada como dever, o que é um mero conhecimento teórico da determinação possível do arbítrio, i.e., de regras práticas; pela segunda, a obrigação de assim agir é ligada efetivamente no sujeito ao fundamento de determinação do arbítrio”. (MS, AA VII, 21) É peculiar da filosofia do direito de Kant a limitação de seu escopo a uma legislação (sempre pura) da razão, quer dizer, àquilo que a razão, quer dizer, àquilo que a razão pode estabelecer a priori no âmbito do direito, e ainda assim firmara uma diferença essencial do direito em relação à ética. (BECKENKAMP, 2003, p. 155).
 
Em Kant, a distinção entre direito e ética não é plenamente rompida em razão de que móbil do arbítrio distinto do próprio dever no mundo do direito – legislação jurídica externa da razão.
 
A legislação ética tem por característica o agir um dever e deste dever também o seu móbil. Por sua vez a legislação jurídica não está afeta ao móbil dever ou então, admitindo outro móbil, por exemplo, a coerção. A legislação jurídica conta com o móbil do arbítrio que não é oriundo da lei; antes, a observa em razão da coerção externa, cuja legitimidade é dada a priori por ser a legislação fruto da racionalidade. Assim sendo, em Kant não há distinção entre legal e legítimo.
 
A ética caracteriza-se por pela “exigência de que a própria lei ou o dever dela decorrente constitua o móbil determinante do arbítrio” (BECKENKAMP, 2003, p. 156). Noutro giro, o direito – que também tem legislação de mesmo caráter – diferencia-se por “admitir (possibilidade) ou mesmo exigir (necessidade) um móbil diferente do respeito pela lei” (BECKENKAMP, 2003, p. 156). O direito, ainda, teria esse elemento categórico e incondicional tal como a moral, pois é oriundo de princípios práticos a priori da razão. O direito em Kant não é a mera disposição positiva à revelia das exigências da razão prática pura. Daí não ser possível falar em dicotomia entre legalidade e legitimidade no modelo kantiano.
 
O mundo do direito é inserido como legislação prática da razão. O direito requer a autonomia da vontade, que é entendida como sendo a liberdade de se dar uma lei. Não se trata de relativismo. Antes, trata-se de uma máxima que se torna universal conforme a razão. Voltando, as leis jurídicas são normas de liberdade, que são leis práticas. O direito dispõe imperativos sobre o arbítrio humano – que poderá descumprir a norma -, e imperativos categóricos, por serem leis práticas ou regras práticas puras, conforme entende Beckenkamp.
“Ora, a qualificação para a universalidade de uma lei prática constitui também a essência da exigência colocada pela razão prática pura para o âmbito do direito ou da coexistência externa dos arbítrios, incidindo agora sobre as ações externas do arbítrio”. (BECKENKAMP, 2003, p. 158).
 
O direito perfaz, portanto, uma exigência de universal – e, ainda, lei moral – da qual é gênese de deveres que um ser racional puro possuiria como móbile de seu arbítrio. Contudo, se tais forem “irracionais” haverá a necessidade de outro móbil. Daí que o direito – como lei moral e, portanto, prática – pode exercer legitimamente outro móbil não ético sobre os arbítrios alheios.
 
As obrigações jurídicas deveriam ser cumpridas somente por serem obrigações oriundas da legislação prática ou moral da razão, ou seja, também deveres éticos. Contudo, nem sempre é assim. Kant constata que a vontade não é hábil o suficiente para promover o agir “por dever”, logo, a razão concebe a permissão de outros móbiles que garantam a coexistência universal dos arbítrios, a coerção. A coerção surge da legitimidade e racionalidade dessa autorização, que surge como uma exigência da razão prática pura.
A coerção é o elemento do móbil que diferencia direito da ética. A ética – doutrina das virtudes – estabelece que a lei seja o seu móbil. Por sua vez, a legislação jurídica – doutrina do direito – não aguarda na pureza da razão a determinação do arbítrio. No direito, a coerção externa é a causa do móbil ao invés do respeito do dever por dever, como um exercício do agir moral.
 
Todavia, vale lembrar que todos os deveres jurídicos são possíveis deveres morais na medida em que todos podem ser seguidos não somente mediante a legalidade – conformidade exterior à norma -, mas também mediante o motivo do dever.
A exterioridade do direito não deve ser entendida, entretanto, como uma simples exteriorização da legislação prática, pois todo seguimento da lei moral seria, na medida em que tem conseqüências no mundo externo, uma exteriorização da lei, o que não significa, entretanto, que tal seguimento também instituiria relações de legalidade no mundo externo. Ora, é precisamente isso que o direito tem de fazer para ter uma função específica no domínio prático, caracterizando-se então propriamente como exterioridade da legislação prática. (BECKENKAMP, 2003, p. 160).
 
Em suma, as leis jurídicas distinguem-se das leis éticas por incidirem exclusivamente no agir externo e na sua legalidade. Destarte, o direito não requer que a própria lei seja a razão íntima na escolha do arbítrio. Para a esfera jurídica basta a adequação externa ao dispositivo da lei. Com efeito, a norma jurídica tem eco exclusivamente na liberdade no uso para com o externo do arbítrio interno do homem, como condição de convivência de arbítrios nas ações externas. Em sentido inverso, a liberdade no uso interno do arbítrio refere-se somente ao código ético.
 
“O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade” (KANT, 1798, p. 76).
 
Destarte, “todo direito vai sempre ser acompanhado de coerção” (FELDHAUS, 2003, p. 129). Sendo que a coerção em Kant é autorização para obrigar e, ainda, todo direito – em sentido estrito – dever ser acompanhado de coerção.
Mas, a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade. Consequentemente, se um certo uso da liberdade e ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais (isto é, injusto), a coerção que a isso se opõe (como um impedimento de um obstáculo à liberdade) é conforme a liberdade de acordo com leis universais (isto é, é justa). Portanto, ligada ao direito pelo princípio da contradição há uma competência de exercer coerção sobre alguém que o viola (KANT, 1798, p. 77).
 
Em suma, o agir deve conviver num mundo de liberdade, conforme leis universais. Portanto, o agente que impede tal gozo de liberdade é injusto – pois seu ato é contrário à lei universal. Com revés, é legítimo – fulcro nessa lei universal – coibir, ou seja, o próprio agente injusto dá a autorização para o direito o forçar à convivência segundo as leis universais, o que possibilita o conviver social e racional.
 
A coerção não é uma ação do Estado contra a liberdade do indivíduo, conforme apregoava a visão positivista. A coerção é o “fruto plantado e colhido” pelo próprio agente que opta por agir contrário às leis universais. É a reação ao seu agir, que gerou e também permite a coerção, logo, legítima – independentemente do Estado coator.
A partir dessa leitura conclui-se que direito e a possibilidade de se aplicar uma sanção – como instrumento de coerção – perfaz “faces de uma mesma moeda”.
O direito não deve ser pensado como composto de duas partes, a saber, a obrigação segundo uma lei e a faculdade, daquele que obriga o outro através de seu arbítrio, de coagi-lo ao cumprimento da obrigação, mas pode-se fazer o conceito do direito consistir imediatamente na possibilidade da conexão da coação recíproca universal com a liberdade de qualquer um (MS, AA VI, 232). (BECKENKMP, 2003, p. 167).
 
Contudo, Kant faz uma ressalva ao exercício da coerção. A necessidade de precisão matemática na determinação das ações que devem ser cumpridas como deveres de obrigação perfeita jurídicos têm a ver principalmente com a legitimidade do uso da coerção aos atos que violam este tipo de deveres, pois o juiz não pode ajustar sua sentença a condições imprevistas e não determinadas. (FELDHAUS, 2003, p. 137).
 
A coerção do direito está vinculada não a uma “matematicidade” no sentido de cálculo exato. Mas, compreender que o direito, assim como a matemática, utiliza de conceitos sintéticos a priori que possibilita a sua aplicação, a partir de uma formulação pura, racional e universal, ao caso concreto.
 
Destarte, as leis positivas somente poderiam ser produziam, em função da violência da coerção, seguindo a concordância de uma legislação a priori da razão.
Contudo, cabe aqui a lição do professor Márcio Paiva, PUCMINAS, que entende que o homem deve fazer do próprio entendimento apontando e escolhendo para a humanidade - sapere aude. Porém, pode acontecer que, um determinado instrumento, regime, legislação ou mesmo a sociedade, não opte pela racionalidade. Aí, fazendo uso da razão – não de modo subjetivista, mas fazendo da máxima uma lei universal - tenha o sujeito que desobedecer civilmente, apontando para a verdadeira dignidade do humano que consiste na autonomia racional.
 
A vontade autônoma se submete à lei moral por ela mesma. A lei de sua liberdade, ou seja, cabe ao homem ser livre, como seu dever último.
 
O desafio de uma sociedade democrática e de direito, dentre outros, é evitar instituir positivamente no ordenamento jurídico normas que não correspondam às exigências da legislação prática fundada na razão e na dignidade humana.
BIBLIOGRAFIA:
 
BECKENKAMP, Joãosinho. O Direito como Exterioridade da Legislação Prática em Kant. Ethic@, Florianópolis, v.2, n.2, p.151-171, Dez 2003.
DE LIMA, Erick Calheiros. Observações sobre a fundamentação moral do direito em Kant. Etic@, Florianópolis, v.4, n.2, p.141-155, Dez 2005.
FELDHAUS, Charles. Distinção entre Direito e Moral na Metafísica dos Costumes. Phrónesis, Campinas, v.5, nº1, p. 125-141, jan/jun. 2003.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).
KANT, Immanuel. Introdução à Metafísica dos Costumes (1798).
PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei. Considerações acerca da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de I. Kant – Liberdade, Dever e Moralidade.
PASCAL, Georges. Compreender Kant. 3ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
PAIVA, Márcio Antônio de. A liberdade como horizonte de verdade segundo M. Heidegger. Roma: Editrice Ponticia Università Gregoriana, 1998.
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e Desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
PAMPLONA-SILVA, Gustavo. Moral, Ética e Direito em Kant. Jurisprudência em Revista, Belo Horizonte/MG, a. I, nº 23. Disponível em: http://jurisprudenciaemrevista.wordpress.com/2008/04/21/moral-etica-e-direito-em-kant. Acesso em: (completar dia, mês, ano).

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Advogado pode consultar processo não sigiloso mesmo sem procuração

Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou liminar concedida pela então presidente da Corte, ministra Ellen Gracie, no Mandado de Segurança (MS) 26772. Com base no Estatuto dos Advogados, em julho de 2007 a ministra permitiu a um advogado consultar, mesmo sem procuração, os autos de um processo em tramitação na Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União em Goiás. Em seu voto proferido na tarde desta quinta-feira (3), o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, lembrou que o artigo 7º, inciso XIII, da Lei 8.906/94 – o chamado Estatuto dos Advogados –, diz que é direito do advogado “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos”. Como o processo em questão não é sigiloso, salientou o ministro em seu voto, a pretensão d